AÇÕES PLURAIS NAS MARGENS DO SISTEMA LITERÁRIO BRASILEIRO: REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS LEITORAS COLETIVAS E POLÍTICA DE IDENTIDADE EM CURSOS PRÉ-VESTIBULARES COMUNITÁRIOS.

Luiz Antonio Silva


        Em “Literatura anfíbia”, artigo publicado no caderno Mais! em junho de 2002, Silviano Santiago aborda a problemática relação entre a produção e recepção literária e a configuração socio-econômica brasileira, marcada pela imensa desigualdade social e a conseqüente existência de um significativo segmento de analfabetos. Devido à dificuldade de apresentar tal questão de maneira descritiva, Silviano busca o auxílio na seguinte metáfora: “o nosso sistema literário se assemelha a um rio subterrâneo, que corre da fonte até foz sem tocar as margens que, no entanto, o conformam”. Acredito que essa metáfora também pode auxiliar a apresentação e o mapeamento das experiências e reflexões que desenvolvo com práticas leitoras coletivas, desde 1996, como agente de leitura do Programa Nacional de Incentivo à Leitura, até aos dias de hoje, como organizador de práticas leitoras nos cursos pré-vestibulares comunitários da Mangueira e de Vila Isabel.
        Neste sentido, conforme a metáfora, os encontros de leitura nesses cursos comunitários correspondem a outra espécie de contato entre as margens e as águas do sistema literário. Digo isso, pois em tais atividades, nós realizamos leituras coletivas de diversos textos, através do desenvolvimento de uma outra forma de acesso à literatura, fora dos limites geralmente impostos pela formação escolar; assim foi possível construir sulcos nas margens em direção ao rio subterrâneo. Em outras palavras, os participantes desenvolveram recepções mais espontâneas e criativas, fora das normas estabelecidas por suas escolas, nas quais as leituras de textos literários são geralmente reguladas pela necessidade de conduzir os alunos a conhecimentos específicos em relação aos temas, estilos, biografia de autores e contextos de obras canônicas e de avaliá-los através de testes e provas.
        Em pouco mais de um semestre de atividade, já percebia que a leitura coletiva permitia a formação de espaços de troca de experiências, nos quais os participantes se apresentavam cada vez mais ativos, críticos e capazes de relacionar suas leituras dos textos com de outros produtos culturais oriundos dos meios massivos eletrônicos, predominantes nas suas vidas cotidianas. Ou seja, estava se configurando, aos meus olhos, uma nova realidade, na qual as águas do sistema literário fertilizaram o rico solo daquela pequena parte da margem, um solo híbrido, constituído de anos de sedimentação de experiências coletivas e oralizadas e pela força invisível e penetrante das freqüências das emissoras de rádio e tv.
        Devo destacar também que a ótima recepção à prática leitora se deve ao fato de que os participantes dos cursos comunitários atuam em ações sociais e, ao mesmo tempo, estão construindo identidades coletivas a partir de um movimento contra a exclusão do acesso ao conhecimento. Ou seja, o sulco não está sendo feito a partir do rio subterrâneo, cuja trajetória é marcada pela tentativa canônica de manter suas águas sempre limpas, sem contato com as margens, mas sim de lentas mudanças promovidas no aparentemente estático solo das margens.
        Na maior parte dos casos, os cursos comunitários são geralmente autônomos e administrados pelos moradores das próprias comunidades, mantidos com pequenas contribuições mensais dos alunos e com o apoio de estudantes universitários que atuam como professores voluntários. Com relação ao local, geralmente os “pré-comunitários” são instalados em espaços cedidos por igrejas, escolas, sindicatos ou prédios de instituições públicas que possuem salas de aula ou auditórios.
        A orientação democrática da leitura coletiva possibilitou o reconhecimento das semelhanças entre os fundamentos que configuram a prática leitora e os objetivos políticos e sociais do curso pré-vestibular comunitário. Ou melhor, os participantes logo entenderam e incorporaram os fundamentos teórico-metodológicos apresentados na realização dos círculos de leitura. Isso porque, nessa prática leitora, cada leitura é respeitada, na tentativa de suspender qualquer tipo de hierarquia entre as interpretações dos participantes.
        Nessa perspectiva, os surpreendentes resultados dos encontros de leitura no curso comunitário da Mangueira, realizados sempre aos sábados à tarde, me impulsionaram a uma série de reflexões sobre o caráter político de leituras coletivas e a uma longa busca de cursos, oficinas e principalmente de informações bibliográficas interdisciplinares sobre práticas leitoras. Acabei reunindo uma bibliografia satisfatória que incluía estudos de historiadores, teóricos da literatura, sociólogos, antropólogos e filósofos. Isso me levou à tentativa de associar campos de estudos que, apesar de serem próximos, geralmente são abordados separadamente: de um lado, a história da leitura e do livro, temas muito comuns na nova história cultural, de outro, os novos rumos da teoria literária iniciada com a estética da recepção e a teoria do efeito estético, nos quais o eixo do exame de textos literários, e até da própria História da Literatura, é deslocado para o leitor.
        Devido à necessidade de conhecer um corpo teórico, que me possibilitasse produzir reflexões mais profundas sobre os fenômenos com os quais estava lidando e, ao mesmo tempo, permitisse um maior diálogo com outras disciplinas das áreas humanas e sociais, resolvi continuar os estudos sobre os encontros de leitura no Mestrado de Estudos de Literatura da PUC-Rio, no segundo semestre de 2000. No mesmo ano, fui convidado para desenvolver a mesma prática leitora no recém criado curso pré-vestibular de Vila Isabel. Finalmente, acabei decidindo fazer dos encontros de leitura o objeto de pesquisa da dissertação de mestrado.
        Desta maneira, na dissertação intitulada “Contato cultural e ação política em práticas leitoras coletivas: Reflexões sobre os encontros de leitura no curso pré-vestibular comunitário de Vila Isabel”, procurei formular uma análise teórico-metodológica das rodas de leitura, nas quais, durante dois semestres, lemos semanalmente diferentes formas de discursos e de expressões artísticas, indo desde obras de autores canônicos da literatura até programas de televisão. Em termos metodológicos, procurei gravar em fitas cassetes os debates para depois analisar cada manifestação dos participantes.
        Entretanto, no desenvolvimento da pesquisa, o meu campo de estudos deixou de ser exclusivamente o ato da leitura, passando para as relações políticas e culturais que essa prática leitora proporcionou para um grupo de pessoas, atuantes num movimento de democratização do acesso ao ensino superior. Essa característica também foi determinada pelo fato de que todas as minhas atitudes, reações e reflexões enquanto mediador das leituras coletivas passaram a ser também objeto de estudo.
        Neste deslocamento de foco, no qual passei a ser incluído, foi possível reconhecer pequenos detalhes fundamentais para o exame das funções sociais da leitura coletiva, tais como: a existência ou não de pessoas e instituições que escolhem os textos a serem lidos e impõem determinados sentidos aos mesmos, bem como a existência ou ausência de hierarquia entre as interpretações e outras questões semelhantes.
        Sendo assim, o objetivo de compreender as dimensões políticas e sociais da prática leitora coletiva me conduziu ao reconhecimento de que as teorias da leitura de base hermenêutica, tais como a estética da recepção e a teoria do efeito estético, não davam conta da complexidade de aspectos envolvidos em tal experiência. Isso porque, na teoria do efeito estético por exemplo, Wolfgang Iser não incluiu na sua análise descritiva do ato da leitura o contexto social e histórico de leitores reais, mas sim as interações entre texto e leitor enquanto estratégias textuais.
        Além disso, pode-se dizer que as análises de Wolfgang Iser sobre o ato de leitura se apresentaram limitadas à minha intenção de pensar a interação texto/leitor no plano coletivo. Mais limitadas, ainda, pareceram-me quando procurei explicitar que relações se estabeleciam entre a atividade de leitura (num curso comunitário) e o contexto sócio-cultural.
        Creio que esse limite se manifesta, porque a teoria do efeito estético, estruturada na intenção de investigar o que ocorre quando lemos, estabelece um singular entendimento das relações existentes entre o contexto sócio-histórico, a literatura e o leitor. Ou melhor, podemos dizer que, na teoria do efeito estético, o contexto sócio-histórico é desconsiderado, pois essa teoria abandona a realidade exterior, considerando seu esvaziamento ao transportar-se para o texto literário. Mesmo nos desdobramentos da teoria do efeito estético para uma antropologia literária, Iser seguiu construindo seus pressupostos teóricos, nos quais manteve e até ampliou a negação ao contexto histórico e social.
        Em lugar da realidade extratextual, com seus conflitos particulares e datados, o que interessa a Iser é a questão da necessidade humana pela ficção. As disposições humanas, que o teórico alemão encontra na análise do ato da leitura, identificam-se como a necessidade de dar “boa continuidade” -- pré-condição à compreensão da narrativa --, o enredamento do leitor no texto e a capacidade daquele de observar a si mesmo nesse processo. Estes são os pontos de partida da formação de uma antropologia literária que aborda as disposições caracterizadoras, em termos de essência genérica, da constituição humana. No conjunto, a teoria do efeito estético e a antropologia literária, na proposta de Iser, consistem numa tentativa de compreender o que esse tipo de “fingimento”, que é a literatura, pode dizer de nós mesmos.
        O mesmo pode se dizer em relação à estética da recepção de Jauss, pois nesta perspectiva, a historicidade de obras artísticas e literárias está reduzida ao diálogo do leitor com a obra, minimizando a relação deste leitor tem com o seu contexto social. Por essa razão, procurei, com o auxílio da teoria da leitura como contato cultural de Gabriele Schwab, identificar o ato de ler como uma prática cultural na qual é possível criar espaços de contato cultural e experimentação de alteridades culturais, políticas e sociais.
        Nessa teoria da leitura, o ato de ler é considerado uma operação de limites que possibilita negociações entre fronteiras marcadas por diferenças históricas, culturais e estéticas. Para fundamentar tal concepção, Gabriele Schwab procura definir como a alteridade e o contato cultural operam na produção e, especialmente, na recepção literária. O contato cultural é considerado, aqui, sob a influência da concepção de Gregory Bateson, não apenas em termos de contatos entre duas ou mais comunidades com culturas diferentes, mas também em situações em que o contato ocorre dentro de uma mesma comunidade.
        A partir dessa perspectiva, é possível identificar como uma forma de contato cultural a relação que a literatura estabelece entre seus leitores e a cultura, na qual um texto literário é produzido e interage. Isso pode ser ampliado não só para os nossos hábitos individuais de leitura, como também aos processos de leitura que estão na base de nossa socialização. Assim, a teoria liga a função cultural da literatura ao seu poder de nos afetar e de mudar ou interferir em práticas culturais. Entretanto, tais mudanças e interferências são freqüentemente provocadas por encontros com a alteridade que desafia suposições familiares, abrindo novas perspectivas não só em relação ao texto como também em relação à realidade extratextual.
        Considerando que nas produções teóricas contemporâneas existe um deslocamento dos debates em direção às questões culturais, a teoria de Schwab representa um exemplo desse tipo de atitude. Enquanto a hermenêutica estética, dos anos sessenta, lida com a leitura apenas em termos de efeitos, de mudança de tradições textuais, Schwab opera um deslocamento na posição hermenêutica para entender a leitura, com a experiência da alteridade que propicia formas de negociação e apropriação cultural. Em outras palavras, a teoria da leitura como contato cultural tenta reformular e renegociar a teoria do efeito estético e a estética da recepção dentro de uma perspectiva cultural.
        Dialogando com essa perspectiva teórico-metodológica, consegui perceber que a produção de sentidos, realizada por cada participante, nos encontros de leitura, proporcionou a construção de um campo de uso e reconhecimento das diferenças, determinadas por diferentes experiências de vida e competências de leitura. E, ao mesmo tempo, comecei a encarar a leitura além dos limites textuais, reconhecendo os outros elementos envolvidos na atividade, tais como: o suporte material dos produtos culturais (uso de fotocópias de partes de livros, CDs, cópia de VHS de filmes transmitido pela tv e outros), a interação entre vários bens culturais, a transgressão dos limites socialmente estabelecidos entre alta cultura, cultura popular e cultura de massa, as diferenças entre ler coletivamente e ler individualmente e a historicidade do contexto no qual a grupo estava inserido.
        No fim da pesquisa, cheguei à conclusão, não definitiva, de que a leitura coletiva, realizada por esses participantes de um movimento social contra a exclusão, serviu como uma forma muito produtiva de contato cultural, já que foram negociados, com razoável competência, os limites culturalmente estabelecidos entre o universo da literatura (campo dominado pela elite letrada), o espaço da mídia eletrônica globalizada e os movimentos sociais contemporâneos que lutam por direitos à cidadania.
        Assim, argumentei que a experiência, desenvolvida no curso comunitário de Vila Isabel -- com o objetivo inicial de desenvolver a capacidade interpretativa de um grupo de pessoas que compõem o setor marginalizado da sociedade --, transformou simples encontros de leitura num espaço de diálogo e questionamento da função e funcionamento das sociedades atuais, e principalmente da nossa. Foi através da recepção de um amplo espectro de objetos - filmes hollywoodianos, de textos de autores canônicos da literatura brasileira, videoclipes, músicas de rock e de compositores brasileiros consagrados -, que esse grupo de jovens conseguiu produzir reflexões profundas e complexas, sem atrelar-se aos saberes exclusivamente acadêmicos e muito menos ao consumismo alienante, incentivado, em grande parte, pela mídia eletrônica.
        A cada encontro realizado com esses estudantes do curso comunitário, eu conhecia melhor os limites dos caminhos teóricos que tinha construído parte da minha perspectiva analítica. Entretanto, descobri que, diante desses limites, poderia adotar a mesma postura questionadora, sustentada na atividade, em relação às muitas correntes teóricas, considerando-as como leituras passíveis de diálogo entre si, sem nenhum tipo de hierarquia.
        Ao mesmo tempo, todo esse processo de abertura para a pluralidade de saberes me atingiu de tal forma que me fez também repensar radicalmente em todos os modelos e posturas hierárquicas, incorporados por uma pessoa que passou pela formação acadêmica. No momento em que percebi pequenas manifestações de tais modelos nas minhas intervenções nos debates, decidi, com a concordância de todos, que cada participante escolheria o material (textos, imagens, filmes e vídeos) para as atividades e passaria a mediá-las. Essa mudança de comportamento revelou um novo mundo de acervos pessoais muito diversificados, no qual encontram-se desde versões em filme de peças de Shakespeare até histórias em quadrinhos. Isso me transportou para realidades marcadas pelo imprevisível e pela possibilidade de contatos culturais produtivos. Trata-se de trocas simbólicas criadas a partir do prazer de compartilhar leituras, idéias, reflexões, e do desejo de participar de fato de um movimento de democratização da cultura.
        Por outro lado, após a conclusão da dissertação, passei a questionar determinadas concepções que utilizei na pesquisa e a observar que na verdade nos cursos pré-vestibulares de Vila Isabel e da Mangueira são construídos outros espaços de contato cultural, através da participação de diferentes tipos de grupos minoritários. Esses dados, sobre os quais venho refletindo recentemente, conduziram a novas reflexões e ao interesse de elaborar uma investigação mais ampla, na forma de tese de doutorado, baseada na união do trabalho dos círculos de leitura com as atividades realizadas por esses grupos de afirmação identitária.
        Tanto no pré-vestibular da Mangueira, quanto em Vila Isabel, os alunos estão freqüentemente recebendo visitas de grupos como Atobá, grupo gay que atua ministrando palestras sobre a discriminação contra os homossexuais, MNU, Movimento Negro Unificado, CRIOLA, grupo feministas de mulheres negras, MST, Movimento dos Trabalhadores sem terra e outros. Além disso, alguns dos participantes dos pré-vestibulares também atuam em grupos desta natureza como no caso do Grupo Mulheres de Atitude, grupo feminista formado por participantes e coordenadoras do pré-vestibular comunitário da Mangueira.
        Todo esse conjunto de ações se apresenta como novo campo para as investigações que venho desenvolvendo, pois reconheci que a concepção de contato cultural, construída na dissertação, estava mais ligada à questão política da transgressão de limites entre alta cultura, cultura de massa e cultura popular, realizada nas leituras coletivas, especificamente, através das escolhas dos vários produtos culturais e nas formas de leitura dos mesmos. No entanto, agora estou visando outro plano de contatos culturais, plano mais amplo em que a ação política está baseada nos movimentos identitários de reação aos vários modelos de exclusão social e não somente em relação ao acesso ao ensino superior.
        Após a constatação destes possíveis campos de atuação para a realização dos círculos de leitura, apresentei uma proposta de criação de encontros de leitura nos quais tanto os alunos dos cursos comunitário da Mangueira e de Vila Isabel, quanto os militantes dos grupos minoritários irão compartilhar leituras de textos, filmes, vídeos e outros produtos culturais. Proposta semelhante foi feita a alguns representantes dos grupos que geralmente apresentam palestras nos cursos, e assim resolvemos incluir esses círculos multiculturais no calendário de atividades de 2003.
        Por outro lado, ao assistir às palestras proferidas pelos grupos, verifiquei que eles também produzem vídeos, textos, poemas, folhetos e outros tipos de discursos sobre histórias de preconceito e discriminação racial, sexual e social. Além disso, muitas vezes, são realizadas oficinas, nas quais situações de discriminação são simuladas, e até peças de teatros são organizadas e apresentadas por eles. Ou seja, isso corresponde à possibilidade de ampliação do foco de análise, deixando de ser exclusivamente sobre a recepção dos produtos culturais, passando a incluir os processos de produção literária, discursiva, artística, multimídia e até teórica, articulados por cada grupo envolvido nas atividades.
        A partir do contato inicial com esses grupos minoritários, foi possível perceber que muitos dos seus discursos e atitudes são geralmente estruturados em visões maniqueístas e dicotômicas tais como: vencedor e vencido, dominador e dominado, explorador e explorado, aceito e excluído e outras. Tais perspectivas são também, muitas vezes, construídas a partir de concepções de caráter purista que tentam identificar a pureza racial, cultural, histórica de cada grupo minoritário.
        Essas ações influenciam no reconhecimento, por parte dos grupos minoritários, que no plano da produção de bens culturais e, especialmente, na produção literária o grupo reconhecido dominante determina as obras que devem ser lidas e a maneira de lê-las. Desta maneira, esses grupos não só identificam o caráter cultural, político e social da formação de cânones, mas buscam realizar reações a imposições e determinações do cânone do grupo dominante, através de diferentes processos de recepção e produção dos bens culturais e de sua valorização.
        Entretanto, conforme minhas observações iniciais, muitas vezes, esses grupos copiam modelos excludentes da cultura dominante ao defenderem posturas puristas que também excluem outros grupos diferentes. Em termos da metáfora do rio subterrâneo e as margens, essas posturas de muitos grupos minoritários seriam as tentativas de criar sulcos independentes nas margens, cada um representando um tipo de grupo minoritário, cujas trajetórias seguem iguais e paralelas ao percurso das águas do sistema literário canônico.
        No plano teórico, essa nova dimensão do trabalho me conduziu à busca de teorias que ao, mesmo tempo, enfatizam a articulação entre a contextualização histórica, social e cultural de leitores como produtores de sentidos, o ato da leitura como contato cultural e os processos de produção de identidades, realidades e ações sociais. Por essa razão, acredito que as teorias literárias estruturadas por pressupostos construtivistas tais como reader response criticism de Stanley Fish e a ciência da literatura empírica são fundamentais a essa tentativa de elaborar uma análise interdisciplinar e plural dos encontros de leitura e suas influências para esses grupos minoritários, fora de maniqueísmos e atitudes panfletárias.
        Na visão de Stanley Fish, teórico do reader response criticism, os leitores criam os textos e não os interpretam, e o sentido atribuído a um texto é criado cognitivamente pelo leitor, pertencente momentaneamente a uma comunidade interpretativa. Dessa maneira, leitores pertencentes à determinada comunidade interpretativa constroem textos semelhantes de acordo como concepções, valores, conceitos, compartilhados por sua comunidade e, ao mesmo tempo, leitores inseridos em comunidades interpretativas diferentes irão construir outros textos.
        A concepção de comunidade interpretativa e a ênfase dada à sua influência em processos cognitivos de leitores consistem num ponto de semelhança entre a teoria de Stanley Fish e os pressupostos teóricos da ciência da literatura empírica. Isso porque, a ciência da literatura empírica é produzida na perspectiva construtivista baseada por pressupostos epistemológicos e meta-teórico, que através de conceitos como consenso e intersubjetividade explicam os processos de construção do conhecimento, de teorias e da própria realidade. Em outras palavras, nesta perspectiva, a internalização de determinadas formas de percepção é que constrói a realidade e não o contrário. Entretanto, os processos de construção produzidos por intersubjetividades e consensos não estão limitados na análise de processos de recepção de textos, como na visão de Stanley Fish, mas em todos os campos da vida humana.
        Neste sentido, a sociedade é entendida como um sistema de sistemas de ações sociais como a política, a educação e a economia. Assim, a cultura de uma sociedade pode ser entendida como um tipo específico de desenvolver, combinar e avaliar processos de produção de modelos de realidade, ou seja, culturas diferentes representam inúmeras formas de modelos de realidade, valores, experiências e visões de mundo.
        Desta forma, a literatura é concebida conforme um modelo de ação literária e não a partir de textos literários. Ações literárias são somente realizadas quando alguém produz ações através de um texto que considera literário, de acordo com suas convicções poéticas. Os conjuntos de ações literárias referentes aos textos, considerados literários por aqueles que realizam tais ações, formam o que é chamado, nesta perspectiva teórica, de sistema literário. A partir desses princípios Siegfried J. Schmidt, um dos teóricos da ciência da literatura empírica, propõe uma nova perspectiva aos estudos da literatura, na qual o texto literário não é considerado como uma entidade autônoma. Assim, o que é enfatizado, através de sua teoria da ação, são as seguintes dimensões do Sistema literatura: produção, mediação, recepção e processamento de “textos literários”.
        Segundo Schmidt, a diferenciação do sistema literatura em relação aos demais sistemas é estabelecida por duas convenções, a convenção estética e a convenção de polivalência, e por exercer funções específicas. A convenção de estética introduz a regra de ação, na qual os enunciados de textos considerados literários devem ser dirigidos por valores e normas estéticas, ao contrário das convenções vigentes em outros sistemas que determinam que os elementos lingüísticos referenciais devem referir a enunciados e ao modelo de realidade compartilhando por um grupo social. A convenção de polivalência introduz a norma que, nos limites do sistema literatura, os agentes têm o direito de atribuir ao mesmo texto resultados recepcionais diferentes e satisfatórios. Sendo assim, os sistemas de literatura têm como função: na esfera cognitiva, criar esboço de modelos alternativos de realidades, de experiências e de vivências; no aspecto normativo, tematizar publicamente conflitos normativos individuais; e no plano emocional, satisfazer as necessidades hedonistas.
        A partir da contribuição dessas visões teóricas construtivistas, acredito que seja viável considerar os encontros de leitura nos pré-vestibulares como ações de recepção praticadas por comunidades interpretativas que desenvolveram e compartilharam determinados consensos referentes à produção de sentidos; ao reconhecimento das diferenças das leituras de cada participante; e à possibilidade de se ler textos considerados literários simultaneamente com outras formas discursivas. Ao mesmo tempo, entendo que as identidades dos grupos minoritários, que mantêm vínculos com esses cursos comunitários, são geralmente construídas de acordo com valores, consensos, discursos e são estruturadas por princípios puristas e dicotômicos, que dificultam a criação de relações plurais com outros sujeitos não pertencentes ao seu grupo.
        Por essas razões, creio que a união entre as ações coletivas de recepção dos encontros de leitura com ações desenvolvidas pelos grupos identitários formam um interessante campo de experiências, que nos leva a pensar sobre as seguintes questões:
        a) Que contatos culturais podem ser estabelecidos, a partir de círculos de leitura, entre comunidades interpretativas que buscam recepções e interações plurais com outras que, apesar de atuarem contra processos de exclusão sociais, constroem identidades e realidades regidas por concepções dicotômicas, fundamentalista e maniqueístas?
        b) Quais as influências que as identidades coletivas, compartilhadas por cada um destes grupos, podem exercer nas suas ações de recepção, mediação e produção artísticas e literárias?
        c) Como os esboços de modelos de realidade, produzidos a partir de sistemas artísticos e literários, compartilhados pelos grupos nos encontros de leitura, poderão interagir com outros sistemas, não regidos pelas convenções de estéticas e de polivalência, tais como identidade coletiva e ação política?
       d) Será que é possível construir um tipo novo de identidade, uma espécie de identidade plural, a partir dos encontros de leituras entre os grupos identitários?
        Enfim, tais questões podem ser traduzidas no seguinte problema: Que papel as práticas leitoras e o sistema literário podem desempenhar para os processos de construção de identidade e da realidade, realizados por grupos de leitores, formados por militantes de diferentes grupos de ação política, tais como cursos pré-vestibulares comunitários, movimento negro, grupos feministas, grupos homossexuais e outros?
        Essas questões estão na interseção dos temas e premissas das teorias da recepção, da teoria da literatura construtivista, dos Estudos Culturais e Pós-Coloniais. Por essa razão, acredito que um estudo interdisciplinar sobre esse tema poderá trazer importantes contribuições ao entendimento das complexas relações existentes entre a produção cultural, a política e movimentos populares de um grande centro urbano latino-americano do início do século XXI.
        Em suma, podemos dizer que estamos aqui na possibilidade de fertilizar neste solo híbrido uma vegetação risomática com o poder de se espalhar, a ponto de construir um novo ecossistema. Digo risomática, a partir de uma metáfora deleuziana, no sentido de um sistema de caules que forma conexões transversais e que não estão centralizados e cercados num ponto. Esse termo rizoma foi retirado, por Gilles Deleuze, do vocabulário botânico que se refere aos “caules subterrâneos de plantas flexíveis que dão brotos e raízes adventícias em sua parte inferior”, ao seja, o risoma difere dos diagramas arborescentes que se constituem a partir de procedimentos hierárquicos fixos num ponto central. Sendo assim, as muitas preocupações de preservar identidades de grupos minoritários podem nos levar novamente às velhas pretensões hierárquicas de formar árvores de conhecimentos, isoladas das demais e presas por fixas raízes que lá no fundo se alimentam das “águas limpas” do sistema literário excludente.

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